Vivemos num tempo em que tudo é fluido. Tudo parece muito solto. Tudo se questiona. As regras e limites de convivência social existem, mas além de não serem respeitados mudam a cada instante de acordo com os avanços biotecnológicos que a ciência produz. Há muito ouvimos dos pais em nossa Escola sobre a dificuldade de dar limites a seus filhos, de lidar com as questões que educar impõe. As últimas gerações de pais têm se deparado com um mundo em movimento frenético, exigências sociais de sucesso econômico e pessoal, de sustentar imagens de perfeição idealizadas por padrões impessoais, modelos fabricados aos quais se veem obrigados a corresponder, e com isso vão se afastando de suas referências pessoais, familiares, tendo consequentemente dificuldade em transmitir para seus filhos valores e atitudes próprias, singulares. As crianças também ficam obrigadas a corresponder a essa exigência impessoal, sem sentido próprio.
O mundo mudou, muda o tempo todo e cada vez com mais rapidez. Impossível tentar acompanhar e se moldar ao ritmo frenético que move nossa cultura. Aliás, esse ritmo vem se mostrando nefasto para a humanidade, haja vista a epidemia que ainda nos assola. Antes mesmo dela, já podíamos constatar a falência desse furor tecnológico, biológico, cultural no mundo. Aquecimento global, miséria, violência, crises econômicas e políticas, um caos. Vemos surgir diversos movimentos sociais que propõem pensar alternativas para uma vida mais saudável, mais solidária entre os povos, e mais integrada com a natureza, que vem sendo devastada.
Tudo solto. Todas as referências e certezas que orientavam a vida caíram por terra. Solto tem como definição, livre de prisão, de cadeias, liberto, o que está desatado, desprendido. Solto não é sinônimo de desorganização, de caos.
Como educar uma criança neste universo de incertezas? Que valores transmitir? O que podemos assegurar para nossas crianças a respeito de suas vidas futuras? Em que mundo viverão amanhã? Como orientar uma escolha identitária singular diante da pluralização de gêneros possíveis de nomear-se, das facilidades e ofertas de modificar seu corpo biológico por completo? A humanidade não depende mais do acasalamento de um homem com uma mulher para garantir sua perpetuação. Todos estamos soltos, livres para escolher o que quisermos. Essa liberdade, contudo, não livra os sujeitos de angústias, depressões, estados de violência e desrespeito em relação a seu semelhante. Com tanta liberdade de escolha, formam-se grupos identitários segregativos e cada vez mais o convívio pacífico entre as pessoas em todo mundo parece impossível.
O que podemos tomar em nossa Escola como referência orientadora em nossa tarefa de transmitir para as novas gerações o encanto que nos sustenta enquanto educadores? A Escola parece não estar encantando os pais como antigamente. Os livros não encantam, os professores não encantam, o que se perdeu? Em reuniões com todos os professores e funcionários em nossa Escola, existe uma unanimidade com relação ao amor pela Escola, ao desejo de fazer parte, um reconhecimento e admiração pelo trabalho e pelos ideais que a orientam, sustentados por Lucia, sua Diretora ao longo de 36 anos. Como transmitir esse encanto, fazer redes que enlacem e sustentem o desejo de saber, de aprender?
Trabalho em uma escola de educação infantil a ensino medio há mais de 10 anos, e contínuo encantada como no primeiro dia em que lá coloquei os pés. Lembro bem que me chamou atenção como as crianças circulavam pela escola livremente, tendo acesso a todos os espaços, inclusive à sala da Diretora que estava permanentemente aberta. Entendi que ali existia respeito, confiança e liberdade. Respeito em relação ao outro, seja esse outro um colega ou profissional; confiança nas relações e vínculos que se construíam e liberdade para ir e vir e, principalmente, para acessar os educadores por qualquer razão que fosse. Nenhum apelo por parte dos alunos era menosprezado, diminuído de importância. Cada um podia ser ouvido e respeitado em suas demandas.
Logo pude constatar o quão difícil era sustentar tudo isso. Como lidar com tantas diferenças, tropeços, acidentes cotidianos, tantas surpresas, tanto inesperado que comparece no dia a dia? Ter regras e orientações pré-estabelecidas, rígidas, que pudessem ser aplicadas e regular o “caos” cotidiano? Definitivamente, essa não era a ideologia que orientava a Escola. Viver desafios a cada dia, estando atento e cuidando para que cada situação pudesse ser entendida e conduzida em sua particularidade, permitindo que cada um pudesse encontrar o seu lugar singular em meio ao ambiente escolar, velando pela segurança, preservação dos vínculos, possibilidade de convívio e principalmente respeito pelas diferenças individuais, isso sim orientava a Escola.
Tarefa muito árdua, que mobiliza todos, cada um em sua subjetividade, seus medos, angústias, preconceitos e outros afetos. Sustentar esse ideal de educação vai na contramão do movimento frenético da contemporaneidade, que exige e impõe cada vez mais uma padronização de comportamentos, uma aderência a diagnósticos, uma identidade marcada e assumida por referências pré-estabelecidas, inúmeros grupos identitários aos quais se incluir e pertencer, que ofertam certezas, garantias, principalmente, garantia de evitar responder aos desafios da vida com seus recursos psíquicos próprios.
Toda adesão a modelos pré-estabelecidos nos desvia do contato com nossa singularidade, com nossa capacidade humana de criação, de invenção, prende e orienta nossas emoções e desejos a padrões impessoais, impedindo que sejamos sujeitos da nossa própria vida, sujeitos que possamos responder por nossas escolhas, nossas condutas, seres falantes, humanos.
Nesse momento de “crise” que a Escola está vivendo, com as mudanças oriundas de um estado de pandemia, impõe-se incorporar todos os recursos tecnológicos disponíveis como ferramentas fundamentais para a manutenção dos vínculos entre Escola, pais, alunos e o desejo de saber. O que só nos parece possível se formos capazes de não perder os valores fundamentais que orientam nossa prática. Sustentar nossa diferença, o que nos faz singulares, únicos e semelhantes. Fazer mudanças para “adaptar” as exigências idealizadas, impostas pela sociedade contemporânea não garante êxito, sucesso e muito menos satisfação.
Acompanhar o movimento do mundo e seus avanços, também inclui questionar-se, interrogar o que é ofertado, criticamente. Não preconceituosamente, mas numa posição reflexiva, que leva em conta os valores fundamentais que nos fazem humanos transmitir esses valores é a única certeza e garantia possível. Certeza de que apesar de não conhecermos o futuro, temos recursos internos que nos permitem continuar criando e inventando.
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