*Texto originalmente publicado na revista Revista on-line da Diretoria da EBP-Rio e-nos

Este é um relato de uma experiência profissional ímpar na área educacional, que desde 2009, interroga e desafia constantemente minha prática clínica. Minha formação acadêmica teve início em 1976 e transcorreu pela clínica privada e por instituições de saúde mental. O trabalho em psicologia escolar, até entrar em contato com a proposta dessa escola, me parecia mais voltado para orientação, adaptação e transmissão de conteúdos curriculares pouco levando em conta a dinâmica psíquica no processo de aprendizagem. São muitas as variantes que interferem no aprendizado e na aquisição de conhecimentos. Sabemos com a psicanálise que a curiosidade e o desejo de saber enlaçam questões subjetivas e acontecimentos significantes da vida infantil.[1] Os impasses e as dificuldades pedagógicas, os comportamentos considerados inadequados, expressam afetos e emoções primárias que indicam sintomas e sofrimentos.
Encontro nessa instituição escolar um projeto pedagógico que se faz interrogar ao propor uma avaliação da aprendizagem de uma forma dinâmica e qualitativa, dispensando as provas escolares como instrumento de medida. Os critérios de avaliação são construídos no dia a dia, através de autoavaliação dos alunos e dos professores, o que constitui um desafio e requisita pensar sobre cada aluno em sua relação com a matéria, com os professores, os métodos e parâmetros da orientação educacional.
O conteúdo programático é avaliado constantemente. O aluno é um participante ativo. Ele tem como tarefa avaliar sua vida escolar, seu aprendizado, sua relação com os professores e com os outros alunos, incluindo-se, assim, no processo. As avaliações qualitativas convocam o professor e o aluno a se implicar, revelando sentimentos, preconceitos, desejos e toda a complexidade que envolve as relações interpessoais. O aprendizado se dá pela via do afeto, do vínculo, do desejo de saber que só se transmite no um a um. Em termos psicanalíticos, pela transferência que se estabelece ou não.[2] Dessa forma, convoca os profissionais a trabalhar com as dificuldades e os impasses sem critérios preestabelecidos, ao tomar cada aluno, um a um, como na clínica, um caso a caso.
Perceber esse diferencial me permitiu desenvolver um trabalho também singular. O cuidado e a preocupação de conhecer cada um, com suas dificuldades, seu processo de aprendizagem e sua socialização eram pontos que traziam para a equipe escolar muitas questões.
Buscar manter um espaço educacional vivo, que interroga subjetivamente cada profissional e a direção pedagógica, a partir de seu cotidiano, mais livre, sem regras rígidas, impõe um trabalho contínuo, considerando as múltiplas contingências que surpreendem e fazem parte da rotina escolar.
Guardadas as diferenças, encontro nessa escola um espaço que possibilita uma interlocução da pedagogia com a psicanálise. Nessa interlocução, localizo inicialmente as seguintes temáticas: uma demanda de saber sobre as patologias mentais, os diagnósticos e a busca por orientações de como agir frente aos impasses que emergem. Demandas que não são atendidas, mas que são acolhidas e endereçadas pela proposta de se estabelecer um espaço de escuta e de conversação com a presença da psicanalista em reuniões regulares com a coordenação e os professores.
Nessas reuniões, a psicanalista facilita a circulação da palavra de todos, sem a mestria de um saber que se sobreponha ao saber de cada um. Propõem-se uma escuta sem julgamento prévio, com outras leituras e escutas das cenas, das situações e das falas, que ressalta a presença das manifestações inconscientes. Em outras palavras, busca-se fazer ex-sistir o inconsciente que ficava recusado, comparecendo como sintoma tanto do lado dos profissionais como dos alunos. O dispositivo da conversação possibilita esse manejo e permite a construção de elaborações singulares.
Fazer operar a dinâmica inconsciente num espaço multidisciplinar é um desafio constante que vem sendo sustentado pela presença e pelo desejo da analista, e vem sendo autorizado pelo desejo e transferência da direção da escola com a psicanálise.
Quando da minha primeira visita a essa escola (no ano de 2009), me chamou atenção o movimento de ir e vir, a circulação dos alunos de todas as idades e a liberdade com que entravam na sala da coordenação e da direção, para fazer solicitações, queixas, contar incidentes cotidianos. Nas palavras da diretora: “A escola é das crianças”.
Depois de uma palestra inaugural daquele ano letivo, uma reunião com as professoras da educação infantil foi solicitada. Elas estavam muito mobilizadas, angustiadas mesmo, com o processo de adaptação das crianças. As preocupações delas se concentravam nos temores das mães, principalmente, acerca de alguns comportamentos agressivos, nas inibições, além das eventuais dificuldades no processo de aprendizagem.
Através das descrições das situações e das soluções criadas para lidar com os conflitos, pude me deparar com a sensibilidade e a sabedoria com que essas professoras conduziam seu cotidiano, não sem impasses e angústias.
Pareceu-me fundamental apontar e sustentar que as professoras tinham um saber legítimo sobre as questões emocionais das crianças. Saber esse extraído dos vínculos afetivos tecidos pelo acolhimento, do cuidado ao receber a criança nesse primeiro espaço social que ela passa a habitar, separada da família de origem. Um saber que pensavam não ter já que não tinham formação teórica na área da saúde mental.
Ao identificar a angústia que fazia parte do cotidiano dos profissionais envolvidos, minha completa inexperiência em psicologia escolar e meu já longo percurso clínico orientaram os passos que fui ensaiando e conduzindo, ao longo de todos esses anos. Localizar os pontos de angústia e os impasses de cada situação apresentada, trabalhar com as próprias falas e a análise das pessoas envolvidas, quase como um processo de associação livre, com intervenções de pontuações, interrogações, recolher de cada caso um saber que ali já existia, remetendo à fala para aqueles que a endereçavam, e procurar me deslocar do lugar de mestria – foram esses passos que orientaram minha prática.
Minhas intervenções limitavam-se a propor reflexões, a interrogar e provocar que cada um pudesse falar, ouvir e apropriar-se do saber adquirido em suas experiências e autorizar-se da própria prática, apostando nos vínculos e nas relações entre os pares. Creio que esse tenha sido um aspecto determinante para o estabelecimento de uma transferência de trabalho com o discurso da psicanálise de orientação lacaniana em um espaço interdisciplinar.
Apesar de nossa contemporaneidade ser regida por categorias e diagnósticos, que desorientam as relações e a construção de vínculos, minhas questões pessoais em relação à infância, dos abusos e violências mais sutis às mais concretas aos quais a criança está suscetível, ao inserir-se no mundo, atravessaram meu percurso de análise pessoal e me permitiram apostar na minha prática clínica como orientadora, ao propor um trabalho de escuta e reflexão com toda a equipe profissional, incluindo o pessoal administrativo e de apoio, baseado em reuniões regulares, de temática livre, procurando acompanhar os impasses cotidianos, sem interferir ativamente na rotina das atividades. As entrevistas com os pais, com os alunos, as soluções de conflitos de qualquer natureza sempre foram conduzidas pelas professoras, pelas coordenadoras ou por outro profissional.
Em uma função peculiar, e êxtima, dentro e fora, participo de um lugar privilegiado, no qual tenho acesso ao núcleo diretor da escola, às coordenadoras e à direção. Tenho acesso também aos alunos de forma indireta e ouço os profissionais de ensino e de apoio. Um lugar privilegiado que me permite observar e pontuar situações de impasse, cooperar com algumas ideias e intervenções sobre questões do funcionamento psíquico e emocional à luz da psicanálise, introduzindo espaços de compreensão e elaboração dos acontecimentos mais diversos que ocorrem no espaço escolar e no processo de educação e aprendizagem.
Esse lugar, que não faz parte do dia a dia da escola, também pode ser sustentado pela transferência da direção pedagógica com a psicanálise, mas encontra muitas resistências principalmente as dos professores dos Ensinos Fundamental e Médio (alunos de 7-8 anos em diante). A educação infantil e a alfabetização, por se tratar de um único professor para cada turma, mobiliza muito mais o profissional que passa um maior número de horas com os alunos e tem um diálogo mais intenso com os pais.
As reuniões semanais com a coordenação e a direção pedagógica acolhem todo e qualquer assunto relativo às vivências escolares diárias: discussão de casos de alunos com dificuldades, dúvidas, preocupações, definição de condutas a seguir, questionamentos sobre o processo educativo, técnicas e recursos possíveis e disponíveis, identidade da instituição escolar, parâmetros, ideologias. Tudo isso possibilita que novas soluções sejam criadas.
A posição dos professores, como detentores de saber, como superiores aos alunos e mesmo aos outros funcionários, é também interrogada, bem como a leitura que se fazia dos sintomas e dos comportamentos infantis como defeitos, deficiências, “chamar atenção”, “desafiar” etc. Propõe-se um deslocamento, uma suspensão do lugar de saber. Ler e escutar as atitudes das crianças como formas de expressar sentimentos, emoções, pensamentos e dificuldades.[3]
Um trabalho constante de interrogar os diagnósticos que vêm se colocando nos universos familiar e social, acompanhando cada vez mais as crianças como um saber prévio sobre cada sujeito, a partir de uma nomeação, um código, um rótulo. Esse é um trabalho contínuo que ainda hoje encontra resistências.
Ao abordar questões como diagnóstico e patologias mentais que comparecem insistentemente como “orientadoras” para o processo de ensino e aprendizagem, pude introduzir conceitos acerca da complexidade presente no processo de desenvolvimento de uma criança em sua entrada no mundo – a aquisição da fala, da linguagem escrita –, questões que representam e significam pontos particulares que precisam ser respeitados e entendidos como manifestações subjetivas, posições de um sujeito que fala, precisando ser ouvidas e não corrigidas ou caladas.
Possibilitar à criança encontrar, no primeiro espaço social que habita, uma construção de novos laços e relações que acolham sua singularidade, suas diferenças individuais, tendo como horizonte e ideal um convívio respeitoso, mesmo com muitas dificuldades, pode parecer estranho, quase impossível.
Educar é uma experiência desafiadora para todos. Para os pais e, principalmente, para a escola que ocupa um espaço “entre”. Entre a família e o social, tendo como tarefa “oferecer”, transmitir conhecimentos às crianças e recursos para elas enfrentarem a vida que têm pela frente. Lidar com as expectativas familiares, com o processo de separação da criança de sua família, com os medos e as angústias que envolvem tal processo é um desafio. Orientar e introduzir valores humanos, normas de conduta, respeito, empatia, cuidado, e estar atento às resistências, emergências e manifestações inconscientes que, em princípio, são desconsideradas, recusadas. Trata-se de um desafio que envolve não apenas questões objetivas, mas, fundamentalmente, no caso das crianças, a construção de uma subjetividade singular, de seus sintomas, seu modo de estar no mundo. Quais valores e referências podem sustentar um projeto educacional, além das referências pedagógicas? Como incluir nesse projeto uma ética do desejo, da política da psicanálise e não uma ética moral?
Quero ressaltar o trabalho do pessoal do apoio, dos que se ocupam da limpeza do espaço escolar, do trabalho na cozinha com a feitura das refeições nos horários de lanche e almoço. Em reuniões com o pessoal do apoio, comparecem depoimentos a respeito das relações com as crianças e com os pais. Ressalto a maneira como estabelecem vínculos e conhecem as crianças, sabem de suas particularidades, suas dificuldades e atuam ativamente no cuidado e, principalmente, em intervenções significativas e importantes.
Acontecem casos em que crianças, ditas autistas, fazem vínculos e passam a ver nesse profissional alguém em quem confiam. Nesse vínculo de confiança, avanços significativos com relação aos sintomas e às dificuldades de falar vão diminuindo; as dificuldades de ficar na sala, os descontroles motor e emocional vão sendo ultrapassados. Assim também os pais endereçam suas angústias e seus dilemas no momento de entregar os filhos na escola, encontrando nesses profissionais, muitas vezes, os confidentes de seus problemas familiares.
Esse trabalho de base é fundamental na estrutura escolar. O pessoal do apoio tem um trabalho próximo da maternagem, dos cuidados pessoais básicos das crianças e do ambiente escolar.
Uma criança precisa de uma comunidade para ser educada. A família de origem é a primeira referência para a criança. E a escola é a primeira referência social, comunitária, o primeiro lugar no qual ela vai se encontrar sozinha, sem a presença dos pais, e entrar em contato com outras pessoas diferentes do seu núcleo familiar.
Um trabalho coletivo é ainda mais desafiador e o que se transmite nesse processo escapa a qualquer intenção ou regra. Transmitimos nosso desejo e nossos medos atravessados por nossas angústias diante do que não sabemos. Não sabemos por que é impossível de saber a priori. Precisamos acolher nossas singularidades e compor com nossos semelhantes um mosaico que permita a cada um expressar simbolicamente as soluções possíveis para os percalços cotidianos.
Um equilibrismo constante e desafiador foi manter minha posição sustentada na ética da psicanálise, ética do desejo, me abstendo de um lugar de supervisão, aconselhamento que constantemente me era solicitado. Atenta a essa ética, sustento uma presença que insiste na leitura dos acontecimentos, dos sintomas, como uma fala a ser escutada, buscando fazer ex-sistir o inconsciente no espaço escolar.
Esse trabalho perpassa por uma linha tênue, ao mesmo tempo, muito nítida para mim: tênue porque, na solidão de minha prática, muitas vezes, minhas intervenções não encontravam eco. Por outro lado, a cada vez que se sentiam mais seguros e confiantes em seu fazer cotidiano, uma laçada se enodava nessa rede e um tecido podia se construir.
Minha participação no CIEN-Rio, alguns anos após minha entrada na escola, me permitiu solidificar a forma que imprimi a essa prática que passa a ser orientada pelo dispositivo das conversações, dos textos teóricos e da troca entre os pares psicanalistas, diferenciando a presença do psicanalista no espaço escolar de uma prática psicopedagógica.[4]
Observo como efeito dessa presença falas que recolho aqui e ali sobre “aprender a ouvir, não precisar ter respostas prontas, perguntar sempre”. Enfim, as demandas de saber deram lugar a interrogações, a reflexões e a um trabalho entre vários. Solidifica-se uma rede de vínculos interdisciplinares que podem acolher o desafio dessa prática impossível, segundo Freud, que é educar.
Uma vinheta prática. Surge na reunião de coordenação uma questão, um impasse, que vinha ocorrendo no trabalho. Falta de compromisso de vários professores com as tarefas pedagógicas. Desde postura em sala de aula com alunos, ao uso de celular por parte do professor, faltas, descompromisso com as atividades coletivas, reuniões, e outras atividades de integração. Alguns professores já haviam sido contactados particularmente, mas havia por parte da coordenação uma insatisfação e dificuldade de abordar a questão que não fosse apenas como uma cobrança formal, uma reclamação, mas que houvesse, de fato, uma mudança de atitude por parte dos professores.
Para ilustrar o que se passava, uma das coordenadoras traz uma foto que tirou em um dos pátios internos, onde se via dois talheres jogados, sujos, no chão, perto de um ralo. No primeiro momento, o fato é atribuído a um aluno, uma criança, ao que a coordenadora retruca dizendo que o local não é um local onde os alunos comem ou circulam com comida etc. Certamente foi um adulto, um professor? A analista presente na reunião sugere que a foto seja levada para a reunião com os professores, colocada na tela, e que, em algum momento, a foto compareça na reunião. Quando começam a se perguntar o que era a foto, onde era, se era uma obra de arte, enfim, as mais diversas interpretações. Revelada a cena da foto, a questão que era um impasse, relativa ao comportamento inadequado de diversos professores, aparece retratada nessa foto e, então, os participantes passam a falar de suas dificuldades em sala de aula, com os alunos, com a dinâmica pedagógica, falam da formação pessoal, de receios, inexperiências, e passam a propor formas de trabalhar em conjunto. Começam a se questionar sobre como poderiam se ajudar mutuamente, fazer parcerias etc.
Leio essa vinheta pela presença da analista na escola como uma questão que foi endereçada com demanda de solução. O trabalho desenvolvido, ao longo de todos esses anos (essa vinheta ocorreu neste ano de 2024), permitiu que a equipe de coordenação e a direção apostassem e levassem a proposta de falar a partir da foto. Fazer a foto falar, provocar as falas pela foto, uma imagem não muito clara ou definida, possibilitou que cada um pudesse trazer suas particularidades e enlaçar novos vínculos e soluções entre os profissionais.
Delineia-se, hoje, um trabalho diferenciado no qual o discurso psicanalítico faz interlocução com o processo educativo escolar, subsidiando teoricamente as questões e os impasses que fazem parte do processo de aprendizagem, a partir de um espaço de escuta, questionamento, discussão e reflexão junto ao corpo docente, aos coordenadores e à direção pedagógica.
Mirta Fernandes, 16 de dezembro de 2024
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[1] Freud, Sigmund. Três ensaios para uma teoria sexual (1905). Obras completas. v. II, Biblioteca Nueva, 3. ed.
[2] Freud, Sigmund. Sobre a psicologia do colegial (1914). Obras completas. Biblioteca Nueva.
[3] Miller, Jacques-Alain. A criança e o saber. CIEN Digital, n. 11, jan. 2012.
[4] Barros, Maria do Rosário Collier do Rêgo. A originalidade da interdisciplinaridade do CIEN. Texto apresentado na VI Manhã de Trabalhos CIEN-Brasil. O que falar quer dizer? Singularidade e diferença, hoje. Rio Janeiro, 23 nov. 2018. A invenção do CIEN. A reconquista do Campo Freudiano. Textos publicados em Trauma, solidão e laço na infância e na adolescência – experiências do CIEN no Brasil. Disponível em: https://ciendigital.com.br/index.php/2018/11/28/trauma-solidao-e-laco-na-infancia-e-na-adolescencia-experiencias-do-cein-no-brasil/?print=pdf.
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