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A CRIANÇA TRANSCONTEMPORÂNEA - TRABALHO PARA JORNADA DE CARTEIS 2024

  • Foto do escritor: Mirta Fernandes
    Mirta Fernandes
  • há 6 dias
  • 5 min de leitura

Atualizado: há 5 horas





















A partir de um caso clínico que se autodenominava “cross dressing” com uso intermitente de hormônios, endereço uma questão diagnóstica ao cartel de psicose ordinária do qual fazia parte. Acompanhando os questionamentos que se faziam presentes em nossa comunidade analítica, no social, na política, na educação, o cartel se dissolve e se refunda em “trans < > contemporaneidade”.  


“O que move uma pessoa a fazer intervenções no corpo biológico para autorizar-se a transitar simbólica e discursivamente em lugares, posições e gêneros sexuais diversos?”


O gozo é queer se seguimos a formulação Freudiana das pulsões originariamente perverso-polimorfas. A criança habita um trânsito pulsional até que o encontro com a linguagem venha marcar o corpo num acontecimento singular. As identificações e escolhas objetais se configuram no processo de subjetivação, a partir das marcas das experiências traumáticas do encontro “sexual com a linguagem”.


Impõe-se para cada um a solução única, sintomática diante da diferença biológica que os corpos exibem. Soluções singulares, formas de gozo únicas, que não se reduzem a qualquer nomeação grupal dos mais variados gêneros sexuais que possam passar a existir.


Atualmente, a partir da experiência com profissionais da educação na interlocução com a psicanálise, do trabalho no cartel e no Cien, recortei algumas questões que me inquietam.


A criança trans, e as intervenções físicas que alteram o desenvolvimento biológico precipitando uma certeza impossível opera uma inibição do falasser em sua subjetividade singular? Observo no universo escolar uma presença dominante do discurso médico com diagnósticos precoces e determinantes que propõem um saber sobre as angústias e comportamentos infantis.


Estamos diante de uma adultização da criança, que é convocada a responder a partir de um saber prévio sobre si. Ao fazer uso do saber científico como uma verdade absoluta, o adulto cala sua própria angústia diante do difícil e desafiador processo que é educar, transmitir valores, cuidar, orientar uma criança.  O lugar do saber se fixa não num outro sujeito barrado, que não possui um saber totalitário, que pode ser interrogado, mas é atribuído aos diagnósticos, à “ciência,” e fica inquestionável.


O mundo virtual, as telas e os diagnósticos vêm ocupar o lugar do Outro barrado, um falasser a quem falta um saber, rotulando, medicando, condicionando e alienando a criança de seu saber autêntico, “um saber respeitado em sua conexão ao gozo que o envelopa, que o anima e do qual podemos mesmo dizer, que o gozo se confunde com ele... acolhemos na psicanálise sujeitos traumatizados pelo saber do Outro, por seu desejo e por seu gozo; os quais, saber, desejo e gozo do Outro tomaram, para certas crianças, valor de real... Trata-se de levá-los ao Outro que não existe. É a criança, na psicanálise, quem é suposto saber, e é mais ao Outro que se trata de educar; é o Outro que convém aprender a se conter. Quando este Outro é incoerente e cruel; quando ele deixa, assim, o sujeito sem bússola e sem identificação, trata-se de elucubrar com a criança um saber ao alcance dela, à medida dela, que possa lhe servir. Quando o Outro asfixia o sujeito, trata-se, com a criança, de fazê-la recuar para voltar a respirar”. [1]


Os diagnósticos se interpõem entre a família e a criança, entre os vínculos amorosos primários, tamponando o real de um gozo opaco determinante dos dramas familiares. Favorecem um aplacamento e anulação das diferenças e principalmente da existência de um novo sujeito. Cada criança é um novo falasser, singular, com seus arranjos e soluções sintomáticas diante do mundo que preexiste a ela. Os diagnósticos que pretendem abranger a subjetividade, curar o sujeito de seu sintoma, anulam as possibilidades criativas e singulares. Anulam inclusive o desejo de saber, de conhecer, na medida em que não há espaço para um não saber. Não há espaço para uma interrogação, uma escuta do que cada criança vive e sofre em sua entrada na vida. 


A criança é deixada só com suas angústias, seus impulsos e sensações que não entende, e o adulto que supostamente seria aquele que poderia ocupar esse lugar de interlocutor, parceiro, quando empossado das certezas diagnósticas, também perde sua capacidade de interagir com a criança a partir de sua própria singularidade, suas percepções, sentimentos e impasses que carreiam todas as relações familiares e sociais.

 

J.A. Miller destacou em seu texto “Em direção à adolescência” [2] a expressão de Lacan “a imiscuição do adulto na criança”: “Há uma espécie de antecipação da posição adulta na criança... esta distinção menino/menina, que se opera a partir da repartição no andar superior homem/mulher”.

“A imiscuição do adulto na criança é o fato de a criança ser conduzida para receber uma distinção e a se distinguir menina ou menino em função deste semblante constituído na idade adulta segundo uma outra lógica e outra economia de gozo, distinta daquela que prevalece na infância”.[2]

Lacan em “Nota sobre a criança”[3] a respeito da família conjugal: “dois falantes que não falam a mesma língua”, “dois que não se escutam falar...se conjuram pela reprodução, mas de um mal-entendido realizado” e veiculado em sua prole”.

“Desde crianças, somos, então, atos falhos corporificados na “baboseira “dos encontros e desencontros entre aqueles pelos quais somos gerados. Entre os humanos, portanto, se seguirmos as indicações de Lacan, a reprodução dos corpos se faz também como reprodução de mal-entendidos”. [4]


Trata-se, portanto, de retomar o que a família conjugal (em suas mais diversas composições) tem por função: uma transmissão irredutível. Nas palavras de Lacan, a “a irredutibilidade de uma transmissão.... de uma constituição subjetiva implicando a relação com um desejo que não seja anônimo”.


Desejo esse que faz função desde que se possa acompanhar esse falasser que se constitui, suportando um real impossível de ser significado a priori, um enigma, um mal-entendido que enreda as palavras nos corpos. Essa “função de resíduo” é o real com que as famílias, os adultos que se ocupam das crianças, vão ter que lidar. Real do gozo singular que não sucumbe aos saberes diagnósticos nem se apaga ou deixa de insistir mesmo encoberto por qualquer intervenção química ou biológica sobre um corpo que goza da experiência viva do trauma da linguagem.


Essa questão do sujeito, da criança, desse falasser oriundo de um desejo de completude, de realização da relação sexual impossível, um ato falho corporificado, encarnando num mal-entendido que orienta a clínica da psicanálise me parece que pode em interlocuções interdisciplinares, dialogar com as práticas educativas e sociais em nossa trans< >contemporaneidade. *** 1 Miller, J.A. (2011).  “A criança e o saber”. CIEN Digital 1

2 Miller, J.A. (2016).  “Em direção a adolescência”. In: Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise (72), março de 2006. São Paulo

3 Lacan, J. Nota sobre a criança (1969). Outros Escritos. RJ. Jorge Zahar, 2003.

4 Laia, S. Identidade, Diversidade e diferença dos sexos. Latusa 26. EBP – seção Rio (2022)

***


Mirta Fernandes

Rio de Janeiro, 21 de junho de 2024.


Cartel Trans<>contemporaneidade

Doris Diego; Mirta Fernandes; Romana Costa; Vanda Assumpção - mais um;

Vera Pazos


 
 
 

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