NASCIMENTO - AGOSTO/21
Como alguém, um sujeito dividido pela palavra pode tomar uma posição na qual sustente uma autoria? O que pode significar autorizar-se? Um sujeito autorizar-se a ser, fazer, sustentar, dizer-se, identificar-se num lugar de uma certeza? Nomear-se.
Certeza, sim, porque o autorizar-se implica em uma forma de garantia de algo, uma marca, uma certeza sobre si que se transmite a outrem. Autorizar implica um ponto de basta, de partida, de referência, que nomeia e a partir do qual o sujeito se nomeia e se singulariza entre vários semelhantes.
É a partir de um ponto contingencial de certeza, ou de uma certeza qualquer, que as ações, criações, a vida de um ser falante se constitui e se orienta. A partir deste ponto, do encontro do sujeito com a linguagem, encontro que marca o corpo com um acontecimento singular, uma marca sinthomatica se nodula. Faz nó a partir das relações primarias do falasser no seu encontro com a linguagem. Autorizar é sustentar a marca singular sinthomatica que rege cada ser falante em sua existência.
Alienação fundamental, estádio do espelho, identificação, acontecimento de corpo, gozo sinthomatico singular decorrente do trauma, do encontro com a linguagem e da marca do significante no corpo. Este é o percurso do falasser.
Seria possível aproximar, tecer algum paralelo do “autorizar-se artista” com o “autorizar-se analista”. Algum ponto em comum?
Remonto a um encontro no seminário com Pablo Bobbio, artista e psicanalista argentino com quem tive o prazer de conversar, que sustenta: “o melhor projeto que pode ter um artista é completar-se como pessoa. A arte como uma maneira de viver e não de fazer”. Que me produz uma questão: Ser artista seria uma posição subjetiva?
A afirmação de Lacan de que o psicanalista só se autoriza de si mesmo...e de alguns outros, indica a autorização, a autoria, como um ato. Um ato marca um limite, uma passagem de um lugar a outro sem retorno, que provoca mudanças, consequências impensáveis, não calculadas. Marca uma mudança de posição subjetiva radical. Como todo ato, um acontecimento solitário, único e inexplicável a priori. Um acontecimento que faz um corte, sinaliza um limite, deixa uma marca, e a partir do qual vai se passar a falar, a produzir, criar, na tentativa de explicar para si próprio esse fenômeno que surge com vida própria, como algo alheio ao sujeito, mas paradoxalmente, desvelando, revelando, exibindo esse ponto singular que é o mais íntimo de cada um.
A questão da autorização comparece em todos os aspectos da vida cotidiana. Em todas as relações humanas e suas formas de expressão. O que diferencia uma afirmação, uma certeza, uma sustentação de valores e conceitos ideológicos, morais, éticos, filosóficos, de uma posição de autorização?
Um artista ao destacar-se, ao “fazer sucesso”, “ganhar fama”, tornar-se mundialmente conhecido e reconhecido em seu modo de apresentar-se de “fazer seu trabalho”, com seu estilo singular impacta e causa admiração por sua coragem, ousadia e determinação. Ao não ceder a seus desejos percorrendo uma via sublimatória de satisfação e ousar desafiar as normas, padrões, verdades estabelecidas, exibe sua autoria e autoriza-se a criar, inventar, inovar, surpreender o mundo e consequentemente intervir e provocar mudanças. Interroga, questiona, divide as certezas constituídas com seu ato autorizado. Um movimento nodular, helicoidal, que ao lançar algo novo, inusitado no mundo, seja este algo de que natureza for, provoca uma desestabilização. Essa desestabilização força rever as normas e costumes estabelecidos e impõe a civilização contemporânea um trabalho de elaboração de novas e inéditas possibilidades até então consideradas impossíveis, impensáveis.
Observo a vida de algumas pessoas famosas, que se destacaram em seus ofícios, artistas principalmente, mas também alguns outros pensadores, sujeitos que se destacaram na história da humanidade, deixaram suas marcas no mundo, habitam e circulam mais livremente na expressão de suas ideias, pensamentos e desejos. Operam deixando-se levar por seus afetos e seu inconsciente sem necessariamente entender ou explicar o que se passa, o que os move ou porque, para que. Temos quase invariavelmente depoimentos que afirmam um imperativo inexorável, que impõe uma produção, uma criação, uma invenção. O sujeito relata um submetimento de ordem pulsional irrecusável. É como se o sujeito emprestasse, cedesse seu corpo a essa força pulsional inconsciente. Um sujeito a serviço das pulsões. Certamente não desorientado, mas uma organização pulsional que privilegia o mecanismo de sublimação.
Uma questão que há muito me interroga é: como se daria essa constituição subjetiva que constrói, ou que tem como mecanismo de defesa princeps, como resposta ao imperativo super-egoico da pulsão de morte, a sublimação? Esse desvio que conclui o circuito da satisfação pulsional com a criação. Esse desvio que humaniza o gozo. Como se dá essa montagem pulsional subjetiva que alivia as angústias existenciais pela via da sublimação, consequentemente da criação, da humanização. Porque alguns sujeitos operam e vivem predominante orientados pela sublimação pulsional e outros, a maioria, pela satisfação pulsional regida por repetições e atuações?
O ser humano se diferencia na natureza por sua possibilidade de criação, invenção e intervenção no mundo que o cerca, na natureza. O poder, o dom da criação é atribuído ao divino, como a origem do mundo e da vida, e, paradoxalmente, a capacidade de criação que os seres falantes possuem é o que permite humanizar o gozo mortífero, pulsional e possibilita enlaces e vínculos que suportam os seres falantes no percurso de sua própria existência com a companhia de alguns outros nos quais se reconhece e dos quais se diferencia. Estabelecer trocas afetivas, laços e vínculos é fundamental para garantir a humanidade desse sujeito falante, único e estranho na natureza.
Ainda observando a passagem pela vida de alguns sujeitos que se destacaram, diria mesmo, se autorizaram em seu “saber fazer”, a sustentação dessa posição muitas vezes leva esse mesmo sujeito a perder-se, entrar num looping de gozo mortífero, no qual acaba perdendo tudo, inclusive a própria vida. Principalmente no mundo contemporâneo neste momento de transformações rápidas, de produções cientificas, biotecnológicas que acenam com possibilidades infinitas de um gozo imediato, sem desvios ou adiamentos pulsionais, tudo parece possível.
Os avanços da ciência, as descobertas e soluções para diversas limitações impostas ao homem em sua existência, também introduzem mudanças e impõem questionamentos a verdades até então consideradas incontestáveis. Contudo, em nosso mundo contemporâneo, as conquistas e inovações cientificas regidas por uma política de capitalismo selvagem, se propõem ou tem com motor de suas criações a ideia ou o proposito de livrar o ser humano de seu mal-estar fundamental e fundante. Do mal-estar de sua existência e do convívio com tudo o que o cerca. Que justamente é o que responde por sua capacidade de criação, de inovação, de mudança.
Ao tentar compreender esse processo que permite ao sujeito autorizar-se em sua singularidade e fazer dela uma marca, transmitir a coletividade os pontos de ancoragem que permitem que uma autorização se dê, e em seguida observar que esses mesmos sujeitos muito rapidamente se perdem de si, são tomados pela volúpia do gozo narcísico decorrente de um investimento libidinal excessivo e insuportável porque coloca uma satisfação sem limites, me ocorre pensar que justamente seria esse ponto de limite do gozo, de impossibilidade que comparece e impulsiona o ato de autorizar-se. Um ponto de basta, um corte, uma falta radical de completude, orienta o circuito pulsional em sua satisfação, impondo um desvio, um adiamento, uma proibição, que opera como proteção para uma atuação mortífera.
O sujeito ao autorizar-se desafia um limite, ousa ultrapassar uma barreira imposta imaginariamente por convenções sociais, morais, e sustenta um traço, uma marca própria, singular. Ao ganhar reconhecimento social, fama, parece ser tomado por um investimento narcísico excessivo que o desorienta. Sucumbe ao gozo pulsional mortífero ao esquecer sua condição humana de incompletude, dependência e desamparo estrutural.
Assistindo ao documentário sobre Billy Holiday, ouço minha questão colocada por um dos personagens referindo-se a artistas que atingem fama: “Quando chegam ao topo têm um colapso, porque?”
Um outro pensamento me ocorre sobre essa questão do “descontrole”, ou perda de limites e mergulho num gozo mortífero desse sujeito que após autorizar-se, sustentar um traço singular que o destaca significativamente dos demais, que inclusive o eleva a um lugar de destaque, de quase idolatria, um lugar em que é desejado e admirado, onde tem acesso a fama, muitos bens materiais, condições financeiras excepcionais, sente-se absolutamente só, não tem paz nem prazer. Observa-se nos artistas da mídia, do show bizz, que em algum momento a demanda se torna excessiva, ultrapassa algum limite suportável, mas o sujeito que outrora sustentou sua posição singular, não mais se diferencia e se aliena.
O autorizar-se impõe um ato, um passo uma travessia como a travessia do Rubicão, o ultrapassamento de um ponto de limite subjetivo alienante. Uma separação. Seria esse ponto de um limite, um ponto de separação que borromeanamente é ultrapassado no ato de autorizar-se, mas que no ato do autorizar-se analista permanece como referência fundamental e intransponível. O autorizar-se analista não coloca o falasser num lugar de completude, mas justamente o faz guardião desse ponto de falta. Esse ponto de impossível, de uma falta radical que mantem a vida dando tratamento ao gozo mortífero, que no caso do autorizar-se artista, principalmente esse artista midiático refém da máquina social capitalista, que “se obtura, se tampona” quando o sujeito é galgado a essa posição de ídolo?
O discurso da psicanálise, ao operar com a falta, com a impossibilidade de completude, sustenta como referência fundamental na prática clínica esse ponto de falta como única possibilidade de vida na operação simbólica do encontro com a linguagem que introduz uma perda de gozo. Perda essa que comparece para todo ser falante, mas que se opera singularmente para cada um a partir do encontro do real do corpo com os significantes que produzem acontecimentos. Efeitos de gozo que vão orientar e determinar os mecanismos sintomáticos de satisfação pulsional que cada sujeito privilegia, repete e adota em sua vida. Sustentar em sua prática e como orientação na transmissão da teoria criada por Freud, posteriormente elaborada por Lacan, esse ponto inquestionável da natureza humana, sua incompletude e impossibilidade de gozo total senão mortífero, se impõe a nós analistas hoje para acompanhar as mudanças do mundo e lidar com o sofrimento humano em sua existência.
Rio, 11 de agosto de 2021
Mirta Fernandes
Psicanalista
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